segunda-feira, 31 de maio de 2010

SADE, INCOMPREENDIDO

 
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SADE, 270 ANOS, AMANHÃ

Parece a mim que todo o legado de Sade foi da derivação de seu nome, a palavra sadismo. Sempre me pergunto sobre este fenômeno reducionista, visto que Sade foi importante pensador de seu tempo. Tive a oportunidade de ler uma boa parte de sua extensa obra nos originais numa época em que mergulhei nos clássicos à guisa de aprender o idioma francês. Lembro que entao comprei uma enciclopédia de clássicos frabceses, na verdade uma ediçao muito antiga, bem anterior a 1958, ano em que, vencida a censura, publicões de Sade puderam pela primeira vez vir à luz das edições. O nome do escritor nem constava ali. Sade,como dizia, foi um pensador, um filósofo incompreendido, como o é até hoje pela moral do establishment, da Igreja e até da psicanálise. Sua bibliografia não é linear, assim como seria uma exposiçao de um só artista, porém com os mais variados estilos de quadros numa mesma sala. O que nele prepondera é o conteudo veementemente libertário. Em "Os cento e vinte dias de Sodoma", também conhecido como "A Escola de Libertinagem", produziu um texto substancialmente escatológico, pesado e indigesto. Já em "Os crimes do Amor" trata com maestria do tabu incestuoso. "Justine",ou "Os Infortunios da Virtude", poderia ser tomado como uma obra religiosa que prega a máxima de que quanto mais bem se faz, mais se é punido, o que não deixa de ser uma verdade em muitos casos. Já em "A filosofia do Boudoir", erroneamente traduzida para o português com "A filosofia de Alcova", Sade expressava corajosamente em seu tempo aquilo a que hoje podemos livremente assistir pela TV. É que hoje não era como d'autrefois, eis a diferença. Foi um homem corajoso, passou a metade de seus dias na prisão, e diz-se - não há provas concretas sobre isso - que teria sido o último ocupante da Bastilha antes de sua queda que simboliza a derrocada da realeza. Aconselho a leitura de Donatien-Alphonse-François de Sade, onde se pode compreender por que o Marquês falido foi um boi de piranha à mesma época em que se consagrava Choderlos de Laclos, inatacável militar de prestígio e célebre autor de "As Ligações Perigosas", que escrevia sobre o mesmo assunto, apenas de forma polida e diciplinada. Acho que foi Jean Paulhan, estudioso de Sade, quem escreveu que o tempo farã justica ao malogrado autor.

domingo, 30 de maio de 2010

LIVRO DE PEDRA

 
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NÃO FALAREI SOBRE PEDRAS

Saiu recentemente o belíssimo "Livro de Pedras", da artista pástica Ena Lautert, uma jovial e incansável senhora de oitenta e poucos anos, artista que começou sua carreira há uns vinte e cinco anos, e cujo primeiro texto sobre seu trabalho tive o orgulho de apresentar. Passado este quarto de século, Ena me convidou mais uma vez para escrever em seu livro.

Não falarei sobre pedras

Sobre elas se assentam as casas, as pontes e as catedrais. Assim, as pedras tomaram o significado de fundamentos sólidos, emprestando, por extensão, suporte à metáfora, como no caso de Ena Lautert. Quando a artista começa sua carreira, em 1982, portanto na meia-idade, já compensa o tempo que, pela rápida aceitação de seu trabalho, não poderia dar como perdido, ou desperdiçado. - Por que não iniciei antes ? - se perguntaria. Mas não foi esta a indagação que ocorreu a Ena. Artista de invejável tenacidade, em sua arte tardia imprimiu toda a pulsão de vida sem imaginar o veloz desdobramento de uma obra intensa. Apenas começava. Não era crível supor que a crítica e o meio dos artistas fossem absorver com tanta admiração o trabalho daquela senhora, com expectativas sobre o seu rumo, a cada etapa de sua evolução. Tampouco se fixou a artista em produzir impactos com o recurso de alguma técnica ou com o artifício de um modismo, de uma tendência. Nela sempre esteve, isso sim, a inevitável eclosão do conhecimento - em parte inconsciente - acumulado numa vida de acurada atenção às coisas da Natureza, aos fundamentos da terra, aos seus destinos e princípios. Nunca é tarde. Para construir sua obra, tomou a pesquisa como pedra de fundação. Cedo caminhava para o abstrato, como num processo de catálise necessário que buscava expressar com maturidade algo que desde sempre se tecia em sua alma. Pouco depois do início de sua carreira, escrevi um texto sobre a artista. E hoje, passados tantos anos, com mais conhecimento sobre a trajetória que ela prenunciava, e como observador mais maduro, me visita outra certeza: Ena sempre parte do princípio, como se fosse uma iniciante, e é por este exercício permanente, embalado por uma juventude inesgotável, entretanto pouco comum a um jovem que inicia nas artes, que nos oferta aos olhos uma visão estética singular, quase única, que poderia já bastar aqui, mas que está longe de esgotar-se. Ela irá muito mais, como quem não cansa de carregar pedras, as reais e as metafóricas, explorando outros meios técnicos, além daqueles pelos quais vem incursionando: a aquarela, o pastel, a acrílica, o papel-machê, firmando-se como uma de nossas artistas contemporâneas de maior prestígio. Seu currículo, pleno de exposições citações e prêmios, é a mais evidente prova disso. Costuma-se enaltecer as pessoas que, já fora de tempo, “subvertem” a ordem das coisas, desafiam o status quo, esta expressão infeliz que nos estanca, e que nos reduz, e que nos anula, e que, por fim, nos mata. Este elogio, que em tais circunstâncias se aplica a qualquer um, não passa ao largo no caso de Ena Lautert, mas não expressaria com todo juízo o valor de sua arte tão própria. - Por que não iniciei antes ? - perguntaria a artista. Porque, simplesmente, em Ena apenas adormecia aquilo que só poderia ser depois.

sábado, 29 de maio de 2010

A PROPÓSITO DE POVOS E IDIOMAS

Sempre tive muito interesse em viajar, curiosidade de conhecer outras gentes e outros lugares. Minha primeira grande viagem a fiz em 1988, a Portugal e Espanha, onde gastei quinze dias no primeiro país e dez no segundo, rematando ainda aquela viagem com um breve giro pela Itália e pela Inglaterra.
De lá para cá fui à Europa praticamente todos os anos, às vezes mais de uma vez, e na maior parte delas à França, país onde desenvolvo um trabalho na área de curadorias de arte.
À Alemanha fui duas vezes, a primeira pouco depois da queda do muro de Berlim, e a segunda uns dois anos depois. Eu não falava nada de alemão, eu nem sequer sabia interpretar um aviso básico do tipo: horário de trens. Cardápio de restaurante, por exemplo, nem pensar em entender. O dedo indicador apontava diretamente para o termo culinário que me parecia mais esteticamente composto, o garçom fazia um gesto de compreensão com a cabeça, e fosse o que Deus quisesse.
Por isso, claro que a questão do conhecimento dos idiomas de outros países, em todas estas viagens, assumiu importância crucial, pois não há pior sensação de impotência do que a falta de comunicação humana ( em todos os sentidos, é claro, mas aqui refiro-me à que trata da falta de uma mínima capacidade na comunicação ). Assim, aprendi desde jovem, quando residi nos USA, o inglês e o espanhol, e depois, quando tinha 30 anos, enveredei pelo francês, língua da qual não conhecia nenhuma expressão sequer, além de merci et au revoir, e que passou a ser a do meu coração, ma langue preferée. Aos cinquenta e poucos, cursei italiano até alcançar proficiência no idioma.
Então, diante de um novo vazio filológico, me perguntei qual seria a próxima língua que poderia aprender. Considerando aqui e ali, sem esquecer o russo, optei pelo alemão, língua temida desde sempre, não obstante a descendência germânica por parte de minha avó paterna, Carolina Kramer.
O incentivo ao aprendizado do alemão veio, entretanto, a partir de dois episódios muito interessantes pelos quais passei.
Estando uma vez numa loja de departamento em Munique, vi uma belíssima camisa azul em liquidação, e como não sabia de qual tamanho comprá-la - porque estas medidas variam de lugar para lugar -, dirigi-me a um sisudo senhor que me pareceu ser o gerente do departamento. Aproximei-me dele depois de longas observações visuais estrategicamente coordenadas que me asseguraram de sua posição de um interlocutor possível, e perguntei-lhe: - Please, could you..., e antes que pudesse concluir com o help me, o sujeito, dono de uma grosseria tão atroz quanto um balde d’água gelada que se joga à cabeça de alguém numa madrugada de inverno, respondeu-me com um grunhido estúpido:
- NEIN !!!
Eu fiquei impressionado com aquela experiência insólita, mas depois de me recompor do choque consegui comprar a camisa com o auxílio de uma gentil funcionária que se comunicou comigo através de gestos amigáveis, todos em alemão.
Tomando uma Autobahn ( que em alemão significa estrada ) em meu caminho rumo a Praga, sem conhecer nada do idioma, eu via a cada cinco quilômetros uma placa que anunciava : AUSGANG. E me exclamava: - puta merda, que cidade grande deve ser AUSGANG, pois não param de aparecer tantos acessos a ela... Alguns quilômetros depois, percebendo que aquilo não era normal, pois eu já tinha viajado por Los Angeles, a mais longa cidade do mundo, e nunca tinha visto tantos acessos assim, lembrei vagamente que a raiz AUS traz o significado de fora, saída, lado externo, etc., e que, então, as tais placas deveriam na verdade anunciar uma saída opcional a qualquer lugar. Ademais, contribuiu para tal conclusão o meu razoável conhecimento geográfico sobre Los Angeles.
Foi assim, por estes episódios isolados, além da proximidade que hoje a idade me liga ao Ahlzeimer, com quem deverei me comunicar, foi assim que decidi aprender alemão.
Logo no terceiro semestre do curso no Instituto Goethe, imaginei que poderia começar a ler um pouco em alemão, o que de fato foi possível já com o conhecimento básico que me proporcionou aquela instituição a que eu chamo “escola de excelência”. Na Biblioteca do Goethe, retirei um pequeno livrinho - destes para crianças de dozes anos - da série Felix & Theo, e com o auxílio de um dicionário que hoje como um braço anda grudado em meu corpo onde quer que eu vá, comecei a ler uma das interessantes historias sobre Helmut Müller, Privatdetektiv. Em certo ponto de uma delas, Helmut, que é um detetive privado, encontra em seu vôo de Dusseldorf a Berlim uma moça bonita que senta ao seu lado na aeronave. Conversam socialmente, o avião aterrissa, e, enfim, despedem-se na esteira das bagagens do aeroporto.
A gente sente, mesmo lendo em alemão num nível básico do aprendizado do idioma, que naquela despedida prematura fica alguma coisa no ar; quem sabe um dia..., sonha Müller, o detetive. E eis que, ao acaso, Helmut e a moça se reencontram pouco depois na hora do check-in no balcão do mesmo hotel onde se hospedam. É claro que a conversa brutalmente interrompida na esteira das bagagens do aeroporto é retomada, desta vez com entusiasmada esperança de algum “reencontro”, pelo menos da parte de Helmut. Ele gentilmente convida a moça para jantar naquela noite, ela aceita sem relutância, eles vão ao restaurante, tomam um bom vinho num ambiente de sedução velada, e depois, já tarde, voltam ao hotel, onde se despedem. Cada um vai para o seu quarto, porque as coisas não são tão soltas como se pode pensar, pelo menos nestes livrinhos para crianças de doze anos.
Todos estes detalhes, tim-tim por tim-tim, a gente fica emocionado em ler em qualquer idioma, imaginem em alemão, língua que até há pouco não se conhecia, tão difícil e aparentemente inacessível, sabe lá quando vamos encontrar uma cara-metade na Alemanha, assim como o detetive Müller sonha ? Até que, para expressar os felizes sentimentos de Muller, o autor do livro apresenta um advérbio de modo: zufrieden. Ele escreve que Muller ist sehr zufrieden. E nesta inocência de leitor neófito da língua de Schüller, fico tomado de espanto: zufrieden ? Como poderia Helmut estar sofrido depois de emocionante e inesperado idílio ? Mas, não dá para acreditar no que estou lendo ! A professora do Goethe tinha ensinado que o importante é a compreensão geral do texto, e não da palavra em si. Mas não dá para resistir. Tomo o dicionário Langenscheidt e consulto o termo zufrieden. Ora, ora, o que ele significa ? Alívio, meus amigos, os alemães também têm sentimentos normais. Em alemão, zufrieden significa nada menos do que estar feliz, o verdadeiro sentimento de Helmut que já sonha em seu quarto de dormir, mas que a língua teuta não deixa transparecer assim tão facilmente, ao menos num lance tão rápido e óbvio. Este é o alemão com quem tenho passado os meus dias e dormido todas as noites. Ich bin sehr zufrieden !

quinta-feira, 27 de maio de 2010

Edgardo Giora

EDGARDO GIORA
Carpi, Província de Modena, Região da Emilia-Romanha, Itália, 1923

Edgardo Giora faz parte daquele grupo de artistas virtuoses que preferem o silêncio e a distância dos holofotes. Veio da Itália em 1948 para trabalhar junto ao Grupo Matarazzo, instalando-se primeiramente nas Minas de Morretes, e depois na cidade de Porto Alegre, onde reside desde então. Jovem ainda, na Europa participou da II Guerra Mundial como soldado das Forças do Eixo, tendo sido pára-quedista especializado em missões de sabotagem. Geômetra de formação, aqui trabalhou como empreiteiro de obras, tendo exercido importante papel nas construções da atual Estação Rodoviária de Porto Alegre e do Planetário da UFRGS. Formou-se advogado por diletantismo e cursou, tardiamente, com seu filho Ítalo, também artista-escultor, o Ateliê Livre da Prefeitura. Como italiano e artista plástico, manteve estreita amizade com Aldo Locatelli, de quem sua pintura apresenta clara e forte influência. Especializou-se no retrato da figura humana, tendo realizado inúmeros trabalhos por encomenda, em especial para a IRMANDADE DA SANTA CASA DE MISERICÓRDIA DE PORTO ALEGRE. Sua pintura de muita síntese, também nos temas paisagem e natureza-morta, apresenta a luminosidade dos impressionistas e a força de pinceladas nervosas como as de alguns expressionistas, lembrando em particular Oskar Kokoschka, artista a quem tanto sempre admirou. Sua última aparição pública deu-se no MARGS, em 2005, na exposição Anima Italiana cujo folder traz em sua capa uma magnífica obra do artista. Sou amigo íntimo do Giora, e como ele tem a idade de meu pai, é para mim um segundo pai, e também um irmão e também um filho. Estou fazendo a curadopria de uma mostra dele no Palácio da Vice-Governança do Estado, o Palacinho, com abertura na segunda-feira, dia 31 de maio, a partir das 18:30h, quando também será inaugurada a foto do ex-vice governador Antônio Holfeldt, homem de cultura e também caro amigo meu.

Pinturas de Edgardo Giora

 

 

 
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quarta-feira, 26 de maio de 2010

de Fernando Pessoa

" Os sentimentos que mais doem, as emoções que mais pungem, são os que são absurdos - a ânsia de coisas impossíveis, precisamente porque são impossíveis, a saudade do que nunca houve, o desejo do que poderia ter sido, a mágoa de não ser o outro, a insatisfação da existência do mundo. Todos estes meiois tons da consciência da alma criam em nós uma paisagem dolorida, um eterno pôr do sol do que somos. O sentirmo-nos é então um campo deserto a escurecer, triste de juncos ao pé de um rio sem barcos, negrejando claramente entre margens afastadas."

do Livro do Desassossego, Cia das Letras, pág. 202

Este era galo !

domingo, 23 de maio de 2010

BITTENCOURT

Bittencourt está jogado no sofá, o Jornal das Oito no ar.
Só desgraça: a morte da modelo com septicemia, a bala perdida que matou o menino na Rua da Gamboa, a Faixa de Gaza. Tudo desgraça da pesada.
Intervalo.
Bittencourt vai ao banheiro mijar e depois passa pela geladeira para apanhar outra cerveja. A mulher está na cozinha, finalizando o jantar.
- Ó, Bittencourt, o jantar está quase pronto. Deixa a cerveja prá hora de comer !
- Já vou, mulher, espera o intervalo !
E as notícias correm, todas terrivelmente tristes, mas já perdendo a intensidade, dada a profusão.
Bittencourt está com uma fome de cachorro. Vai para a copa, camisa de física, e suado senta à mesa, o ouvido atento ao Jornal das Oito, todas aquelas merdas saindo da TV. Faz um terrível calor na casa.
- Sabe, mulher ? Esses dias de hoje, tão agressivos. A gente liga a TV, lê o jornal e escuta o rádio. Só essas coisas, esses crimes todos, não é de dar nojo ?
A mulher concorda com o marido, mas apenas com um sinal de cabeça. Ela não costuma falar. Ele sim dá opiniões, emite juízo de valor sobre os fatos, que é um cidadão de bem, com direito de ir e vir assegurado, uma vida ilibada.
E agora, a segunda parte do Jornal.
Ah, Bittencourt não perde nada. Levanta da mesa levando prato e garfo na mão, volta para o sofá e pede à mulher que lhe alcance a cerveja.
Desgraça e mais desgraça. Agora não mortes, mas crimes financeiros de toda a sorte, desvios de merenda escolar, obras superfaturadas, não acabadas e, ainda por cima, inauguradas em véspera de eleição.
Que pouca vergonha - não escapa o desabafo de Bittencourt -, refestelado no sofá.
E chega a última parte do Jornal das Oito.
-- “ Uma quadrilha composta de mais de quarenta e cinco pessoas, entre as quais funcionários no INSS e laranjas de empresas-fantasmas, foi desbaratada ontem pela Polícia Federal. Entre os mandantes do crime organizado, fulano, sicrano e beltrano... A polícia, que esteve na vila Calvário atrás de uma empresa envolvida no esquema, encontrou apenas uma casa simples onde vivia um aposentado e sua mulher. Eles disseram não ter nada com a quadrilha, mas foram levados à Delegacia para depoimentos...”
- Olha só, mulher, aonde chegamos, até aposentado envolvido como laranja. Pouca vergonha.
E a mulher, que quase não fala :
- Hoje é assim, Bittencourt. Vai ver que eles não têm nada a ver com o crime. As pessoas são julgadas pelo Jornal das Oito, e depois caem em desgraça. Essa é a TV que vives vendo.
O locutor segue:
- A Polícia Federal continua procurando envolvidos com a máfia do INSS...
- Tá vendo, mulher ? Pelo menos caminhamos para o fim da impunidade. Aos poucos as pessoas vão parar atrás das grades e se dar conta de que o crime não compensa.
Bittencourt vai à geladeira e volta com outra cerveja.
O Jornal das Oito termina, ele levanta e vai mijar,antes que comece a novela.
Batem à porta.
- A essa hora ? Quem será ? – se interroga Bittencourt.
A mulher vai atender. Abre e vê aquele monte de policiais armados até os dentes.
- Polícia Federal !

sábado, 22 de maio de 2010

LEMBRANÇAS

Lembro das balsas com que atravessamos o Rio Guaíba, e depois os arroios no caminho à campanha. Até Bagé, cidade onde nasci, foi uma viagem de três dias com paradas nas fazendas onde nos hospedamos, meu pai e eu. Lembro que plantei uma semente de trigo bem na frente da porta de uma daquelas casas de fazendas. Escreveram a meu pai contando que ela pegou e deu frutos. Depois, passada a época da colheita, tiveram que arrancá-la com alguma consternação, porque ela impedia a entrada à casa. Foi o que me contou meu pai. Lembro de uma poeira sem fim numa daquelas estradas de terra, numa tarde abafada, os vidros da Ford 1950 preta abertos, uma tremenda vontade de vomitar e uma vergonha muito maior de confessar minha indisposição. Lembro de nosso retorno quando em Caçapava, bem no centro da cidade, caiu a balança da Ford, e meu pai, que além de veterinário era também um bom mecânico, nada mais pode fazer senão buscar uma oficina onde a “barata” deveria ser consertada. Lembro que então fomos almoçar na casa de um velho amigo dele. A mulher do amigo nos recebeu à porta da casa de onde vi uma escadaria íngreme, quase infinita. De lá desceu o velho homem que nos acolheu na sala enquanto a mulher preparava a comida. Depois ela juntou-se a nós. Lembro que senti um cheiro de queimado, e que desta vez falei. - É o arroz !, gritou a mulher assustada correndo à cozinha. Lembro que pouco depois ela serviu o almoço, um pouco envergonhada por causa do arroz que trazia ainda o cheiro e o gosto de queimado. Lembro que ela me perguntou como estava o almoço. Lembro que disse que estava bom, e que depois de comer seguimos viagem. Lembro da chegada a Guaiba, da travessia do rio, de chegar em casa. Lembro que poucos dias depois meu pai me contou que seu amigo tinha morrido de um enfarte. É tudo o que lembro.

terça-feira, 18 de maio de 2010

MARINA SILVA, RAZÃO E COERÊNCIA

Amigos: Desculpem pela ausencia. Estive viajando.

Hoje tive a oportunidade de ouvir pelo rádio a entrevista - ou, melhor dizendo, a sabatina da RBS - a que Marina Silva, senadora licenciada e candidata à Presidência do Brasil, submeteu-se com a desenvoltura de um sábio. A mim parece que Marina da Silva é uma pessoa para lá de abençoada, não só pela estatura do pensamento cristalino de alguém que foi alfabetizado há poucas décadas pelo MOBRAL, mas, sobretudo, pela honestidade e coerência com que se impôs a cada momento da sabatina, esbanjando conhecimento sobre os temas mais palpitantes do país, sugerindo caminhos para as suas soluções mais urgentes, etc., tudo isso sem bravatas ou soluções mágicas, fazendo-me crer em sua mais leal autenticidade. As respostas que Maria dá não se processam nos escaninhos da conhecida mente dos políticos, isto é, não transitam pelos meandros seletivos de que se valem argumentos astutos e de ocasião. E Marina não choca por sua honestidade, por sua coragem de dizer o que eleitor nenhum gostaria de ouvir, e nem por elogiar generosamente os próprios adversários, cada um, a seu ver, em sua medida. Uma campanha de altíssimo nível, como nunca antes se viu na história deste país... Chances de Marina Silva ? São poucas, na verdade, mas o que se sabe é que esta mulher franzina e esbelta como uma jaguatirica, ganhando a simpatia dos muitos que a conhecerão pelas campanhas de rádio e TV, vai incomodar muita gente de respeitável páreo. Ao ponto que será mesmo provável que a ataquem duramente para conter seu provável crescimento, ou – isso sem dúvida – que a adulem para ganhar a simpatia de seus votos no segundo turno. Eis aí uma pessoa inteira, alfabetizada aos dezesseis anos de idade, dona de um discurso honesto como é difícil de ver em nosso meio. Deus te abençoe, Marina Silva, exemplo dignificante da mulher brasileira !

Correção: Ophs, errei !

Em meu texto sobre o Cirque du Soleil, escrevi que a troupe veio pela Lei Rouanet( como viera d primeira vez ). Desta vez nao aconteceu isso. O patrocinio foi integralizado pelo mesmo Banco de antes. Sorry.

terça-feira, 4 de maio de 2010

Acerto de contas

Pagamentos de campanha são como honorários de prostitutas. Devem ser pagos rigorosamenbte em dia.

CIRQUE DU SOLEIL, ou bien encore " Cirque des Ombres "

Cirque du Soleil
( ou bien encore, Cirque des Ombres )

Saudado como um fenômeno de teatro de performances, o Cirque du Soleil chega mais uma vez para tentar preencher o vazio do vazio cultural de nossa cidade. A exorbitantes preços que vão de 150 a 450 reais, deixa a maior parte dos espectadores ( a dos ingressos mais baratos, naturalmente ), atrás de colunas ou a partir de ângulos de onde não se vêem mais que sombras em movimento. Mas não são só estas as sombras de que falo. A troupe canadense aporta no Brasil com o benefício da Lei Rouanet e “patrocínio” de um banco privado que, além de se beneficiar com a propagação de sua imagem, vende com privilegiada antecedência e facilitadas condições os ingressos preferenciais a seus correntistas ( aqueles que podem optar por ficarem sous le soleil ). Brasileiro gosta de coisas estrangeiras, é mesmo uma doença sem cura. Tudo o que vem de fora, tudo o que se paga com euro e dólar é melhor, é mais fino, tem requinte. Em uma palavra: é chic. Também porque preenche a crônica social, outra mania de brasileiro. Quantos circos mambembes pelo Brasil afora poderiam estar se apresentando com o patrocínio da Lei Rouanet neste país que literalmente matou aquela expressão autêntica em que se viam animais e feras, palhaços e mágicos, trapezistas e mulher-barbada ? Ah !, os animais - eu dizia -, foram estes ( ou a proibição da presença destes nos espetáculos ) os que mataram a tradição dos circos das pequenas vilas e cidades. Em nome da maldade de alguns, a exceção virou regra, o que é outra legítima tradição brasileira. Pagaria o dobro para ver o grupo Tholl, de Pelotas, muito superior ao Cirque Du Soleil ( ou bien encore “des ombres” ), mesmo levando em conta de que aquele não dispõe do arsenal técnico dos canadenses, porque ali no Tholl, no lugar de efeitos pirotécnicos, só predominam arte e talento.

sábado, 1 de maio de 2010

PAR E ÍMPAR, de Tatiana Druck

 
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POESIA DE TATIANA DRUCK

A poesia muitas vezes tem sido o refúgio de alguns que, desejando sucesso e fama, a ela se lançam sem mais cuidados. Outros autores, entretanto, nela vivem um sentido indissociável da alma. É o caso da Tatiana Druck, que nos brinda com PAR E ÍMPAR, do qual alguns poemas vão a seguir. Recomendo este livro pela fina sensibilidade da autora e, principalmente, pelo tema escolhido, a relação amorosa, mistério, sempre reveladora de nossos dramas mais ternos.

DESPERTADOR
Teu beijo chupado longamente
na garagem
esta manhã
sugou minha vontade de ir embora
Deixou-me anêmica de coragem

MULTIPLICAÇÃO
Casei com meu primeiro namorado
Era único, era um, era de verdade,
tinha nome:
Marido
Milagre,
quando me separei,
parece que deixei uma multidão de entidades
E mais algum homem escondido.

DETALHE
Segura com jeito a meia-taça
Branca rendada
Entorna e bebe meu vinho santo e não me peças mais nada
Por enquanto