domingo, 3 de outubro de 2010

Carta que escrevi no jornal de cultura Usina do Porto, em 2003

Esta carta está relacionada à postagem anterior.

Senhora:

Analisando bem, o seu problema pode estar no sapato. Verifique isso. Talvez ele não lhe aperte o pé, mas, com certeza, o salto de seu sapato é muito alto, e isso tende a desestabilizá-la. Pessoas como a senhora, apesar de sua inteligência, charme e escolaridade, por vezes não podem ver uma coisa tão simples como essa, a menos que se disponham a colocar-se de lado e observar a altura do salto do sapato em frente ao mesmo espelho que reflete ainda a beleza de sua juventude. A senhora, sim, é jovem, é bonita, além de competente e bem intencionada, quero crer. Mas o seu problema é o salto. Ele é alto, ele é desproporcional aos nossos olhos que não descolam deste detalhe enquanto a senhora fala meneando a cabeça em garbosos gestos que ninguém gosta de ver. E assim, a tudo que possa a senhora querer dizer, as pessoas não dão importância, ou não entendem, porque ficam fixadas na altura do salto de seu sapato, dispersando a atenção que deveriam dar-lhe. Saiba, senhora, - se me permite dizê-lo -, a gente daqui é muito simples, algumas até preconceituosas em relação a estrangeiros, o que em nada é louvável – suponho -, mas, ainda assim, a gente daqui sente um certo orgulho de suas façanhas que servem de modelo a toda a terra, tirante esses últimos acontecimentos que têm assolado a nossa honra. Se pudesse dar-lhe um conselho sincero e amigo, eu diria à senhora para calçar outro tipo de sapato. Talvez não lhe parecesse tão elegante à primeira vista, assim que a senhora se mirasse no espelho, mas tal providência, ao aparentemente diminuir sua estatura física, aumentaria a humana, colocando-a no mesmo nível de nossos olhos, assim como gostaríamos de falar com nossos interlocutores, isto é, sem termos de elevar a cabeça como se a eleva a deus que – seja ele qual for –, não pertence a este reino da Província de São Pedro. Faça o teste, senhora, e verá que posso ter alguma razão no que lhe escrevo. A senhora então sentirá certo alívio, parecerá navegar nas nuvens, estará bem mais confortável, tudo sorrirá à sua volta. Os inimigos passarão a respeitá-la, ao invés de tão somente criticá-la. Os amigos serão mais amigos, e os falsos cessarão o fogo-amigo. Faça o teste, senhora, um sapato com salto mais baixo – providência tão simples - lhe fará muito bem.
Respeitosamente, o seu sapateiro.

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