quarta-feira, 16 de maio de 2012

Notas sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário

Algumas notas sobre a obra de Arthur Bispo do Rosário(*) Em 1938, duas noites antes do Natal, Arthur Bispo do Rosário é tomado por uma aparição. Nela, surgem sete anjos azuis, e Arthur Bispo interpreta ser ele próprio o enviado de Deus à terra, encarregado de julgar os vivos e os mortos. Aguarda, pelo resto da vida, o momento supremo do encontro com Deus. A partir de então inicia sua grande obra de reunião de significados (oferendas), que deverá portar aos umbrais da eternidade, vestindo o principal deles, o chamado Manto da Apresentação. É um enviado, segundo crê, investido desta grande tarefa que o ocupará até o fim de seus dias, a partir de desiderato divino. Negro, pobre e discriminado, de pronto é enviado a um hospício do Rio de Janeiro, e pouco depois, diagnosticado esquizofrênico-paranóide, internado na Colônia Juliano Moreira. Conta, então, trinta anos. E ali passará boa parte do resto de sua vida, até falecer, em 1989, com oitenta anos de idade. Produziu uma obra extensa, marcada, resumidamente, de um lado pela elaboração de assemblages, técnica que consiste em reunir objetos, agregando-os entre si, de modo a conferir-lhes significados, e, de outro, pela execução sistemática do coser de frases e mensagens, predominantemente na cor azul ( a cor celeste, divina, reveladora da pureza da Virgem Maria, da qual Arthur era devoto ), com linhas extraídas do desfiado de uniformes de mesmo matiz, descartados na colônia manicomial. Arthur Bispo do Rosário não soube, assim como a crítica de arte não reconheceu a justo tempo, que foi ele o primeiro grande artista brasileiro contemporâneo, adiantando-se mesmo a Lygia Clark e Hélio Oiticica, sendo estes mais conhecidos, ainda que mais jovens, por terem tido suas obras largamente exaltadas pela mídia. A obra de Bispo, interno de um manicômio, ao contrário, só viria ao conhecimento público muito mais tarde. Não se estabelece aí, entretanto - em minha opinião -, uma comparação valorativamente equilibrada, pelo fato de que Bispo é um artista cuja criação advém de estímulos blindados por sua reclusão. Criou - se pudermos classificar assim -, uma arte disponível, isto é, trabalhava com os materiais que encontrava ou explorava nas precárias condições de internação, que conheceu em períodos alternados por cinco décadas de sua vida (de 1938 a 1964, de forma intermitente, e de 1964 até 1989, ano de sua morte, de forma definitiva ). Estes elementos não eram adquiridos por encomenda organizada que lhe oportunizasse opções amplas para criar, mas os únicos disponíveis dentro de seu mundo de confinamento no manicômio. Na metódica construção de sua obra, Bispo apropria-se, assim, não de matéria-prima convencional, mas apenas daquela rarefeita e existente em seu pequeno universo geográfico, a Colônia Juliano Moreira. E em sua cela, para onde traz estes elementos, assim como um avaro guarda o seu tesouro num esconderijo, cria o seu mundo artístico particular, redundante de si mesmo em dimensões, mas vasto em seu afã de liberdade. Com tais elementos, preciosidades raras num universo de confinamento, Bispo construiu – assim penso - sua “fórmula” de pulsão de vida. Botas de borracha, colheres, xícaras, pedaços de madeira e tecidos serviram de matéria-prima de uma arte que não se pode classificar por representação, mas, em essência, uma arte construtivista, digna de Torres Garcia, Braque e Joan Brossa, apenas diferente em sua mensagem. Se em Torres Garcia encontramos uma mensagem semelhante àquela do espectador consciente, descritiva da urbe, por exemplo ( La ciudad sin nombre ), ou se em Joan Brossa percebemos um exercício irônico e iconoclasta, em Bispo deparamos com um discurso vocativo, profético e apocalíptico fundado na premissa divina de sua função terrena. A arte construtivista é erigida a partir de materiais naturais e sintéticos oferecidos pela industrialização, isto é, uma arte já em alguma extensão feita, sendo que seu significado nascerá, desde o princípio, da gênese mesma do objeto, ou de uma diretriz visualmente construída pela união, junção e superposição de materiais que já trazem consigo parte intrínseca da mensagem. Nela, o artista necessariamente “dialoga” com o material, que utiliza de acordo com suas vivências, sua memória emocional e sensorial. Estes materiais não deixaram de significar para Bispo os seus verdadeiros aliados, seus companheiros de existência, seus filhos diletos. Lembremos que o artista “conversava” com suas obras antes que estas itinerassem por exposições. Advertia-as a se comportarem e não sucumbirem às tentações mundanas. Lembremos também que em Bispo do Rosário não tratamos de Arte Bruta, tão característica dos psicóticos. O artista conserva noções de perspectiva e fundamentos da arte convencional, sem que ela propriamente assim possa ser considerada. Bispo tampouco freqüentou sessões de terapia ocupacional, a exemplo de integrantes do Museu do Inconsciente ( vide Nise da Silveira ), e nunca submeteu-se a qualquer análise. Sua arte é plenamente idiossincrática; não representa a academia, não tem a ver com quaisquer movimentos em voga de seu tempo, não é perpassada por influências de modismo ou mercado, e o próprio Bispo não se considerava artista. Recluso em manicômio a grande parte de sua existência, Bispo do Rosário é um autóctone de seu próprio território mental, puro em si mesmo, e, talvez por isso, como acreditava, produziu uma obra igualmente pura, digna de Deus. É também a obra de Bispo, em largo senso, estruturalista, pois utiliza a palavra, não a dita ou tradicionalmente escrita, mas aquela meticulosamente bordada em sentenças codificadas que, entretanto, em alguma extensão, apesar da questionável normalidade de “nós outros”, terminamos por reconhecer como possíveis manifestações nossas, e mesmo delas nos apropriamos de alguma forma. Por suas características, e num exercício de transversalidade, poderíamos formalmente comparar a obra de Bispo com as de outros artistas que, como ele, viveram as agruras do confinamento, ou mesmo apenas circunstanciais fases de depressão. Mas serão apenas nuanças a considerar nestes casos, tais como a repetição, a monocromia e a geografia em que se insere – sempre mentalmente – o artista. Georges Seurat, fundador do pontilhismo, por exemplo, apresenta uma obra construída pela repetição de milhares de pontos em diferentes cores sobre o suporte, dando forma ao objeto. Ora, a repetição é uma forte característica na obra de Bispo do Rosário, mas entre cada um daqueles compulsivos pontos de bordado se produz um denso raciocínio no lugar de um simples e mecânico ato ocupacional. Tomemos Armando Reverón, célebre artista venezuelano que esteve internado por muito tempo, optando finalmente por viver numa casa que construiu sobre uma árvore, onde edificou suas fronteiras geográficas - assim como Bispo o fez em sua cela -, e que apresenta-nos vários exemplares monocromáticos de uma obra por vezes considerada minimalista. O gesto minimalista não deixa de ser uma renúncia velada à vivência dos estímulos convencionais. É uma espécie de regressão conduzida aos poucos por uma linha de Ariadne até as origens da simplicidade. Edvard Munch, o autor de “O grito”, durante décadas produziu inúmeras versões de desenho, gravura e pintura de um mesmo retrato chamado “A menina doente”, em referência a uma irmã que perdera, ainda na infância, vítima de tuberculose. Edvard Munch era um homem profundamente depressivo. Sua obra tinha este caráter de insistência e repetição temática, aqui não pelo gestual, mas pela insistente reprodução memorial do trauma. Mas falávamos de Bispo do Rosário, cuja obra não é a de um Reverón, sob o prisma minimalista, nem a de um Munch, repetitiva e carregada da depressão de “um ser dito normal”, e menos ainda a de um Van Gogh, que poderíamos arrolar entre casos que tais, por seu gestual único, inimitável. Para resumir, pinçando dois casos de esquizofrenia, na fase minimalista de Reverón as cores são brandas e a mensagem do artista é suave e plana, quase invisível. Em Bispo do Rosário, as cores, apesar de limitadas, o são pela indisponibilidade de matéria prima. Já o artista profere um discurso veemente e até mesmo invasivo sobre nossa percepção, imprimindo a carga de sua vivência de marinheiro, de boxeador, de enxadrista e de leitor assíduo, exibindo razoável cultura e deixando vazar, malgrado sua condição mental, “certa normalidade”, assim como entendemos esta. Com os estandartes de suas Misses, por exemplo, Bispo funda uma geografia possível para si - e para nós -, porque não distanciada da realidade, e reproduz em detalhes, surpreendendo nossa cultura e memória, os nomes de países, cidades e locais reais que configuram, em suma, o nosso mesmo universo. Com seus singelos tabuleiros de xadrez, percebe o espaço e suas soluções, ou ainda, suas “possíveis saídas” ou “escapes” para o que apropriadamente, referindo-se à situação reclusa de Bispo do Rosário, situa a curadora da exposição, Helena Severo: “este universo onírico que configura aquilo que Freud chamou de “retirada de interesse pelo mundo, que, no limite, conduz ao abismo psicótico.” Por fim, entre todas as classificações imagináveis, e no que toca à percepção imediata, a arte de Bispo do Rosário encontra a mais importante delas: trata-se de uma obra poética, reveladora de inegável estética e repleta de significados que tomam e comovem o espectador. Paulo César do Amaral Outono de 2012 (*) Texto do autor, exprimindo o seu ponto de vista, como base para a reflexão do debate de 27 de abril de 2012, sobre a exposição de Arthur Bispo do Rosário, no Santander Cultural, Porto Alegre. Bibliografia: HODIN, J.P.. Edvard Munch GARCIA, Torres. La Ciudad sin Nombre LAZARO, Wilson, SEVERO. Helena. A poesia do fio

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