domingo, 23 de maio de 2010

BITTENCOURT

Bittencourt está jogado no sofá, o Jornal das Oito no ar.
Só desgraça: a morte da modelo com septicemia, a bala perdida que matou o menino na Rua da Gamboa, a Faixa de Gaza. Tudo desgraça da pesada.
Intervalo.
Bittencourt vai ao banheiro mijar e depois passa pela geladeira para apanhar outra cerveja. A mulher está na cozinha, finalizando o jantar.
- Ó, Bittencourt, o jantar está quase pronto. Deixa a cerveja prá hora de comer !
- Já vou, mulher, espera o intervalo !
E as notícias correm, todas terrivelmente tristes, mas já perdendo a intensidade, dada a profusão.
Bittencourt está com uma fome de cachorro. Vai para a copa, camisa de física, e suado senta à mesa, o ouvido atento ao Jornal das Oito, todas aquelas merdas saindo da TV. Faz um terrível calor na casa.
- Sabe, mulher ? Esses dias de hoje, tão agressivos. A gente liga a TV, lê o jornal e escuta o rádio. Só essas coisas, esses crimes todos, não é de dar nojo ?
A mulher concorda com o marido, mas apenas com um sinal de cabeça. Ela não costuma falar. Ele sim dá opiniões, emite juízo de valor sobre os fatos, que é um cidadão de bem, com direito de ir e vir assegurado, uma vida ilibada.
E agora, a segunda parte do Jornal.
Ah, Bittencourt não perde nada. Levanta da mesa levando prato e garfo na mão, volta para o sofá e pede à mulher que lhe alcance a cerveja.
Desgraça e mais desgraça. Agora não mortes, mas crimes financeiros de toda a sorte, desvios de merenda escolar, obras superfaturadas, não acabadas e, ainda por cima, inauguradas em véspera de eleição.
Que pouca vergonha - não escapa o desabafo de Bittencourt -, refestelado no sofá.
E chega a última parte do Jornal das Oito.
-- “ Uma quadrilha composta de mais de quarenta e cinco pessoas, entre as quais funcionários no INSS e laranjas de empresas-fantasmas, foi desbaratada ontem pela Polícia Federal. Entre os mandantes do crime organizado, fulano, sicrano e beltrano... A polícia, que esteve na vila Calvário atrás de uma empresa envolvida no esquema, encontrou apenas uma casa simples onde vivia um aposentado e sua mulher. Eles disseram não ter nada com a quadrilha, mas foram levados à Delegacia para depoimentos...”
- Olha só, mulher, aonde chegamos, até aposentado envolvido como laranja. Pouca vergonha.
E a mulher, que quase não fala :
- Hoje é assim, Bittencourt. Vai ver que eles não têm nada a ver com o crime. As pessoas são julgadas pelo Jornal das Oito, e depois caem em desgraça. Essa é a TV que vives vendo.
O locutor segue:
- A Polícia Federal continua procurando envolvidos com a máfia do INSS...
- Tá vendo, mulher ? Pelo menos caminhamos para o fim da impunidade. Aos poucos as pessoas vão parar atrás das grades e se dar conta de que o crime não compensa.
Bittencourt vai à geladeira e volta com outra cerveja.
O Jornal das Oito termina, ele levanta e vai mijar,antes que comece a novela.
Batem à porta.
- A essa hora ? Quem será ? – se interroga Bittencourt.
A mulher vai atender. Abre e vê aquele monte de policiais armados até os dentes.
- Polícia Federal !

5 comentários:

  1. Muito bom. A imprensa muitas vezes cria processos Kafkianos. Geralmente quem se dana são os pobres ou quem teve coragem de denunciar os poderosos.

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  2. Caros Bípede Falante e Terráqueo, meus assíduos blogueiros:
    Pobre mesmo do Bitenca ( gostei do apelido ). Escrevi isso faz dois anos, exatamente num momento - como ressalta Terráqueo - em que
    éramos, como ainda somos, julgados pelo Jornal das Oito. Abs.

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  3. Muito bom. Tadinho do Bitenca. Se a PF faz uma operação e prende uma pessoa (que depois se verifica que ela era inocente) o Jornal das Oito está apenas divulgando um fato. O problema é o Jornal das Oito fazer sua própria investigação e denunciar uma pessoa inocente. Mesmo que o Jornal seja condenado -- em ação judicial -- a divulgar que errou não vai fazer com o mesmo destaque e ênfase, até mesmo, porque Inês já estava morta, o prejuízo moral já está causado e não tem retorno.

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  4. Maia, era essa a intençao do texto !
    Abraço

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