domingo, 30 de maio de 2010

NÃO FALAREI SOBRE PEDRAS

Saiu recentemente o belíssimo "Livro de Pedras", da artista pástica Ena Lautert, uma jovial e incansável senhora de oitenta e poucos anos, artista que começou sua carreira há uns vinte e cinco anos, e cujo primeiro texto sobre seu trabalho tive o orgulho de apresentar. Passado este quarto de século, Ena me convidou mais uma vez para escrever em seu livro.

Não falarei sobre pedras

Sobre elas se assentam as casas, as pontes e as catedrais. Assim, as pedras tomaram o significado de fundamentos sólidos, emprestando, por extensão, suporte à metáfora, como no caso de Ena Lautert. Quando a artista começa sua carreira, em 1982, portanto na meia-idade, já compensa o tempo que, pela rápida aceitação de seu trabalho, não poderia dar como perdido, ou desperdiçado. - Por que não iniciei antes ? - se perguntaria. Mas não foi esta a indagação que ocorreu a Ena. Artista de invejável tenacidade, em sua arte tardia imprimiu toda a pulsão de vida sem imaginar o veloz desdobramento de uma obra intensa. Apenas começava. Não era crível supor que a crítica e o meio dos artistas fossem absorver com tanta admiração o trabalho daquela senhora, com expectativas sobre o seu rumo, a cada etapa de sua evolução. Tampouco se fixou a artista em produzir impactos com o recurso de alguma técnica ou com o artifício de um modismo, de uma tendência. Nela sempre esteve, isso sim, a inevitável eclosão do conhecimento - em parte inconsciente - acumulado numa vida de acurada atenção às coisas da Natureza, aos fundamentos da terra, aos seus destinos e princípios. Nunca é tarde. Para construir sua obra, tomou a pesquisa como pedra de fundação. Cedo caminhava para o abstrato, como num processo de catálise necessário que buscava expressar com maturidade algo que desde sempre se tecia em sua alma. Pouco depois do início de sua carreira, escrevi um texto sobre a artista. E hoje, passados tantos anos, com mais conhecimento sobre a trajetória que ela prenunciava, e como observador mais maduro, me visita outra certeza: Ena sempre parte do princípio, como se fosse uma iniciante, e é por este exercício permanente, embalado por uma juventude inesgotável, entretanto pouco comum a um jovem que inicia nas artes, que nos oferta aos olhos uma visão estética singular, quase única, que poderia já bastar aqui, mas que está longe de esgotar-se. Ela irá muito mais, como quem não cansa de carregar pedras, as reais e as metafóricas, explorando outros meios técnicos, além daqueles pelos quais vem incursionando: a aquarela, o pastel, a acrílica, o papel-machê, firmando-se como uma de nossas artistas contemporâneas de maior prestígio. Seu currículo, pleno de exposições citações e prêmios, é a mais evidente prova disso. Costuma-se enaltecer as pessoas que, já fora de tempo, “subvertem” a ordem das coisas, desafiam o status quo, esta expressão infeliz que nos estanca, e que nos reduz, e que nos anula, e que, por fim, nos mata. Este elogio, que em tais circunstâncias se aplica a qualquer um, não passa ao largo no caso de Ena Lautert, mas não expressaria com todo juízo o valor de sua arte tão própria. - Por que não iniciei antes ? - perguntaria a artista. Porque, simplesmente, em Ena apenas adormecia aquilo que só poderia ser depois.

Um comentário:

  1. Caro Paulo Amaral, pedaços de Ser e Estar no Mundo, belissimamente retratados.

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