sábado, 29 de maio de 2010

A PROPÓSITO DE POVOS E IDIOMAS

Sempre tive muito interesse em viajar, curiosidade de conhecer outras gentes e outros lugares. Minha primeira grande viagem a fiz em 1988, a Portugal e Espanha, onde gastei quinze dias no primeiro país e dez no segundo, rematando ainda aquela viagem com um breve giro pela Itália e pela Inglaterra.
De lá para cá fui à Europa praticamente todos os anos, às vezes mais de uma vez, e na maior parte delas à França, país onde desenvolvo um trabalho na área de curadorias de arte.
À Alemanha fui duas vezes, a primeira pouco depois da queda do muro de Berlim, e a segunda uns dois anos depois. Eu não falava nada de alemão, eu nem sequer sabia interpretar um aviso básico do tipo: horário de trens. Cardápio de restaurante, por exemplo, nem pensar em entender. O dedo indicador apontava diretamente para o termo culinário que me parecia mais esteticamente composto, o garçom fazia um gesto de compreensão com a cabeça, e fosse o que Deus quisesse.
Por isso, claro que a questão do conhecimento dos idiomas de outros países, em todas estas viagens, assumiu importância crucial, pois não há pior sensação de impotência do que a falta de comunicação humana ( em todos os sentidos, é claro, mas aqui refiro-me à que trata da falta de uma mínima capacidade na comunicação ). Assim, aprendi desde jovem, quando residi nos USA, o inglês e o espanhol, e depois, quando tinha 30 anos, enveredei pelo francês, língua da qual não conhecia nenhuma expressão sequer, além de merci et au revoir, e que passou a ser a do meu coração, ma langue preferée. Aos cinquenta e poucos, cursei italiano até alcançar proficiência no idioma.
Então, diante de um novo vazio filológico, me perguntei qual seria a próxima língua que poderia aprender. Considerando aqui e ali, sem esquecer o russo, optei pelo alemão, língua temida desde sempre, não obstante a descendência germânica por parte de minha avó paterna, Carolina Kramer.
O incentivo ao aprendizado do alemão veio, entretanto, a partir de dois episódios muito interessantes pelos quais passei.
Estando uma vez numa loja de departamento em Munique, vi uma belíssima camisa azul em liquidação, e como não sabia de qual tamanho comprá-la - porque estas medidas variam de lugar para lugar -, dirigi-me a um sisudo senhor que me pareceu ser o gerente do departamento. Aproximei-me dele depois de longas observações visuais estrategicamente coordenadas que me asseguraram de sua posição de um interlocutor possível, e perguntei-lhe: - Please, could you..., e antes que pudesse concluir com o help me, o sujeito, dono de uma grosseria tão atroz quanto um balde d’água gelada que se joga à cabeça de alguém numa madrugada de inverno, respondeu-me com um grunhido estúpido:
- NEIN !!!
Eu fiquei impressionado com aquela experiência insólita, mas depois de me recompor do choque consegui comprar a camisa com o auxílio de uma gentil funcionária que se comunicou comigo através de gestos amigáveis, todos em alemão.
Tomando uma Autobahn ( que em alemão significa estrada ) em meu caminho rumo a Praga, sem conhecer nada do idioma, eu via a cada cinco quilômetros uma placa que anunciava : AUSGANG. E me exclamava: - puta merda, que cidade grande deve ser AUSGANG, pois não param de aparecer tantos acessos a ela... Alguns quilômetros depois, percebendo que aquilo não era normal, pois eu já tinha viajado por Los Angeles, a mais longa cidade do mundo, e nunca tinha visto tantos acessos assim, lembrei vagamente que a raiz AUS traz o significado de fora, saída, lado externo, etc., e que, então, as tais placas deveriam na verdade anunciar uma saída opcional a qualquer lugar. Ademais, contribuiu para tal conclusão o meu razoável conhecimento geográfico sobre Los Angeles.
Foi assim, por estes episódios isolados, além da proximidade que hoje a idade me liga ao Ahlzeimer, com quem deverei me comunicar, foi assim que decidi aprender alemão.
Logo no terceiro semestre do curso no Instituto Goethe, imaginei que poderia começar a ler um pouco em alemão, o que de fato foi possível já com o conhecimento básico que me proporcionou aquela instituição a que eu chamo “escola de excelência”. Na Biblioteca do Goethe, retirei um pequeno livrinho - destes para crianças de dozes anos - da série Felix & Theo, e com o auxílio de um dicionário que hoje como um braço anda grudado em meu corpo onde quer que eu vá, comecei a ler uma das interessantes historias sobre Helmut Müller, Privatdetektiv. Em certo ponto de uma delas, Helmut, que é um detetive privado, encontra em seu vôo de Dusseldorf a Berlim uma moça bonita que senta ao seu lado na aeronave. Conversam socialmente, o avião aterrissa, e, enfim, despedem-se na esteira das bagagens do aeroporto.
A gente sente, mesmo lendo em alemão num nível básico do aprendizado do idioma, que naquela despedida prematura fica alguma coisa no ar; quem sabe um dia..., sonha Müller, o detetive. E eis que, ao acaso, Helmut e a moça se reencontram pouco depois na hora do check-in no balcão do mesmo hotel onde se hospedam. É claro que a conversa brutalmente interrompida na esteira das bagagens do aeroporto é retomada, desta vez com entusiasmada esperança de algum “reencontro”, pelo menos da parte de Helmut. Ele gentilmente convida a moça para jantar naquela noite, ela aceita sem relutância, eles vão ao restaurante, tomam um bom vinho num ambiente de sedução velada, e depois, já tarde, voltam ao hotel, onde se despedem. Cada um vai para o seu quarto, porque as coisas não são tão soltas como se pode pensar, pelo menos nestes livrinhos para crianças de doze anos.
Todos estes detalhes, tim-tim por tim-tim, a gente fica emocionado em ler em qualquer idioma, imaginem em alemão, língua que até há pouco não se conhecia, tão difícil e aparentemente inacessível, sabe lá quando vamos encontrar uma cara-metade na Alemanha, assim como o detetive Müller sonha ? Até que, para expressar os felizes sentimentos de Muller, o autor do livro apresenta um advérbio de modo: zufrieden. Ele escreve que Muller ist sehr zufrieden. E nesta inocência de leitor neófito da língua de Schüller, fico tomado de espanto: zufrieden ? Como poderia Helmut estar sofrido depois de emocionante e inesperado idílio ? Mas, não dá para acreditar no que estou lendo ! A professora do Goethe tinha ensinado que o importante é a compreensão geral do texto, e não da palavra em si. Mas não dá para resistir. Tomo o dicionário Langenscheidt e consulto o termo zufrieden. Ora, ora, o que ele significa ? Alívio, meus amigos, os alemães também têm sentimentos normais. Em alemão, zufrieden significa nada menos do que estar feliz, o verdadeiro sentimento de Helmut que já sonha em seu quarto de dormir, mas que a língua teuta não deixa transparecer assim tão facilmente, ao menos num lance tão rápido e óbvio. Este é o alemão com quem tenho passado os meus dias e dormido todas as noites. Ich bin sehr zufrieden !

5 comentários:

  1. Paulo Amaral, para além de ter o dom da palavra é um artista.

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  2. Blue in Green, quanta gentileza tua. Acho que prefiro a palavra à arte. Mas, pensando bem, há alguma diferença ?
    Abraço e bom final de semana.

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  3. Paulo,

    As pessoas se sentem zufrieden perto de ti.
    Grande abraço,
    Terráqueo

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  4. Oi Terráqueo. Levei um susto. Tu por aqui ? E pensei que as pessoas à minha volta se sentissem sofridas. Como é difícil tirar esta palavra - no mau sentido - da minha cabeça.
    Novidades: Minha cadeira da ACADEMIA BRASILEIRA DE BELAS ARTES será de grau, a de número 8, patronímica de Antônio Parreiras. Quase certo que a posse será no sábado, 7 de agosto. Abraço.
    Meu abraço.

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  5. Sehr Gut Paulo!! Der Text ist sehr interessant.

    Vor zwei Jahren denkt ich dass, Deutschen unmöglich zu lernen war. Aber heute kann ich schreibe das für dir. So, das ist nicht unmöglich.

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