sábado, 3 de abril de 2010

Agora um pouco de crítica:

Editado recentemente, o livro A GRANDE FEIRA, de Luciano Trigo, é uma pérola para quem acha que não entende nada sobre arte - e para quem pensa que entende, também.
Fiz uma resenha que apresento aqui. Curtam!

A GRANDE FEIRA
Pode um enorme tubarão cortado ao meio e imerso num tanque transparente com formol ser uma obra de arte ? A resposta é sim. Esta obra de arte pós-moderna, de autoria de Damien Hirst, foi vendida por doze milhões de dólares ao administrador de fundos americano Steve Cohen. Dois anos depois, ela iniciou um processo de decomposição, Cohen secretamente procurou o vendedor, ambos negociaram a substituição do peixe, e nada mais se falou sobre o assunto. O livro de Luciano Trigo inicia com este comentário e atravessa suas 240 páginas escritas com clareza, indignação e humor destilando críticas ácidas contra aquilo a que o autor denomina “o clube ”, fruto de uma aliança entre investidores, curadores, diretores de museus, conselheiros de entidades, marchands, galeristas e, é claro, “artistas”, todos trabalhando em nome de um mercado fictício que em algum momento eclodirá como uma nova bolha especulativa no mercado. Esta nova ordem surgiu nos estertores do modernismo, na década de 70, quando o dinheiro parou de correr atrás da arte, dando lugar a um movimento inverso – e perverso -, incentivado por marchands como Charles Saatchi, o vendedor do tubarão e criador de Damien Hirst, a criatura. Passamos à era da arte por designação, isto é, artista é aquele que vem a ser ungido pelos membros do clube. Sua arte não necessita recorrer a fundamentos técnicos e muitas vezes é elaborada por terceiros, como numa cadeia produtiva, por instrução do artista eleito e protegido. Para o autor, a responsabilidade sobre esta indigência cultural da artre deve-se a um conjunto de fatores que se ajustam em conveniência de interesses ( iniciando, é claro, pelo dinheiro) com o respaldo da ausência de uma crítica consciente e capaz de dissertar sobre o objeto tangível e contemplável da criação, evitando qualquer julgamento que não seja elogioso aos propósitos do sistema. Esta arte tomou espaço nos museus que, em geral encontrando-se à míngua pelo descaso do Estado, prendem-se ao sistema que lhes alcança o capital em troca da chancela oficial. É a nova academia. Segundo Trigo, que bate forte e com algum exagero no neo-liberalismo, “ antigamente a posse de uma obra de arte dava respeitabilidade ao dinheiro dos muitos ricos; hoje é o dinheiro dos muitos ricos que dá respeitabilidade à obra de arte”. Fica, assim, no cenário da espetacularização das mostras em geral, difícil para o público contestar qualquer tipo de obra ungida por um sistema quase ditatorial a que os museus – entidades ratificadoras de valores estéticos - dão apoio irrestrito. E a crítica ausente – ou cooptada -, e os membros do clube felizes e contentes, ficamos todos bem assim, num “ me engana que eu gosto ”. Em relação a exemplos desta arte, por vezes grotesca, desrespeitosa e repleta de apropriações banais, que bem revelam a ausência da mínima meditação, o autor recheia o livro com imagens de algumas obras enigmáticas, a mais reveladora delas uma fotografia de 1936, de autoria de Walker Evans, apropriada posteriormente, e exatamente idêntica ao original, duas vezes, em 1979 por Sherrie Levine, e em 2001 por Michel Mandiberg. Trigo, jocosamente, mais uma vez dela se apropria ele mesmo em seu livro, em 2009, com sua assinatura e o comentário: “por que eles podem e eu não ? ” Insiste o autor no fato de que boa parte da arte pós-moderna só existe a partir de referências, isto é, ela não se alça por si própria, constituindo um discurso repetitivo sobre o óbvio –ou o nada - muitas vezes repleto de gracinhas de mau gosto, como a instalação La Nona Ora, de Maurizio Cattelan, mostrando o Papa João Paulo II caído com seu cajado ao chão após ter sido atingido por um meteoro. Dedica um capítulo intitulado “ A falência da crítica de arte ”, que talvez seja a lição mais útil do livro, afirmando que os poucos críticos que ainda existem seguem a linha de texto “ não me comprometa”, repleto de descrições redundantes que desembocam num discurso tedioso e vazio, isso quando não se limitam a reproduzir ipsis litteris os releases enviados pelos próprios artistas. A leitura de “ A grande feira ” permite ao leitor, sem nenhum constrangimento, discernir por que ele “ não entende ”, exposta numa galeria ou num museu, uma instalação composta de uma sala branca e vazia em que habitam inexplicavelmente uma bola de futebol presa a um fio pendente do teto sobre um monte de serragem, ou de qualquer outra coisa, até estrume. Basta escolher.



A GRANDE FEIRA - Uma reação ao vale-tudo na arte contemporânea
Luciano Trigo, 239 páginas
Rio de Janeiro – Record, 2009

4 comentários:

  1. Paulo, adorei esse teu texto, como os demais que costumo ler nor jornais do Sul do Brasil. Procurei esse livro quando estive em Porto Alegre, mas estava em falta em todas as livrarias. Acho que está fazendo sucesso. Para esse tipo de arte, fruto do marketing, sempre deixo uma mensagem ambígua "Essa obra de arte demonstra a perplexidade do ser humano diante do infinito.", ou se ela for uma ofensa a inteligência escrevo "precisa treinar mais". Ultimamente, tenho aplicado a segunda frase com uma freqüência incrível. Adorei teu blog, e vou voltar sempre.

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  2. Oi, Marcelo:
    Grato pela mensagem. Ainda estou me acostumando com este tár de brógui. Quando entender mais, vou colocar todas as coisas no lugar.
    Abraço.
    Paulo

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  3. Passei por aqui guiada por Bípede Falante (no seu blog). Adorei seus comentários e vou ler esse livro urgentemente. Obrigada pela informação.

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  4. I.Moniz: Grato pela mensagem. É realmente um documento essencial este livro do Trigo. Ali podemos entender toda a farsa e a amplitude da "grande sacada ".
    Abraço.
    Paulo

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