sábado, 12 de junho de 2010

JAMAICA

Homenagem a minha querida amiga e escritora Patrícia Bins


Somente o acaso me faria vagar na manhã fria pelas ruas do vilarejo. Depois do café, já fora do hotel, acendi uma das pequenas cigarrilhas que sempre levo para estes momentos curtos e inesperados para saborear o vício sem prejudicar na essência o protocolo dos solitários e discriminados fumadores de charutos. Pus-me a passear pela Pequena Jamaica - o nome do lugar -, que avistara desde o interior do hotel em me haviam colocado, nos arredores do aeroporto após a perda do vôo. Tive curiosidade de andar por ali, algo me chamava. Acho que era o sol. E fui. Tinha vivido na América, fazia muito tempo, e aqueles dias me vieram à lembrança, agora modificada, amadurecida pelas convenções do tempo em mim, adaptada ao que, passados 40 anos, via e sentia à minha volta: o ar frio e seco, as ruas asfaltadas e silenciosas, as flores murchas, cansadas de adornar os jardins formais das casas - estas de Jamaica, simples, mas com automóveis de grife estacionados em seus pátios mal cuidados. Em longos intervalos, surgia solitariamente nalguma esquina um carro em marcha lenta, deixando para trás a fumaça da descarga visivelmente acentuada pelo frio cortante. Jamaica. Era o último dia do ano. Em minha direção caminhava com alguma dificuldade uma senhora preta, muito velha, curvada sobre a própria espinha, talvez no farewell de sua existência, e assim que cruzamos, esforçando-se para levantar a cabeça, com um sorriso largo, como se fosse de renovada esperança, exibiu seus claros e ainda conservados dentes, desejando-me com a voz rouca e ainda forte: - Happy Holidays ! Respondi instantaneamente do mesmo modo, mas com a emoção da advertência que há muito me faltava nesses momentos que sinalizam mudanças, ou sugerem novas fases, em que repensar a vida no ano que inicia, aquilatar razões e valores mais ocorre por imposição de marcos temporais do que por escolha desejada. Não gosto de pensar nas coisas de tempo. Penso ser a vida simplesmente um mistério. Vesti uma luva de lã em uma das mãos, enquanto com a outra segurava a cigarrilha, já pela metade, me concentrando em conservá-la assim, imutável, por mais tempo, meu propósito inicial sendo o de fumar rapidamente e retornar, antes que o frio consumisse o prazer da caminhada, ao lobby daquele hotel desprovido de qualquer charme, de qualquer caráter próprio, retrato clássico de todos os outros que abrigam pessoas de passagem em frias viagens de trabalho: executivos, funcionários, comandantes e aeromoças, e, por vezes, prostitutas, como num hôtel de passe, nenhuma dessas gentes criando vínculos com as paredes que tão somente as acolhem na circunstância inusitada. Ocupava-me em preservar a cinza na ponta da cigarrilha, impedir que ela caísse, arrependido por não haver trazido um charuto, como faço de hábito, e por ali andar mais tempo. Algo me chamava a prosseguir no percurso a esmo pelas ruas de Jamaica. Me afundei umas dez quadras. As casas eram muito parecidas, construídas dentro de um programa habitacional ao estilo americano, provavelmente destinado a pessoas de baixa renda. Diferiam entre si apenas por um puxado a mais, ou a menos, uma sacada que se estendia para fora da fachada, ora à direita, ora à esquerda, de modo a quebrar a monotonia de um projeto sistematizado, calculado a centavos de dólar, fundido num orçamento restrito. As decorações de Natal ainda estavam lá, esquecidas sobre os jardins, ressequidas pela nevasca de dias antes, todas elas constituídas de figuras aramadas, envoltas por fios cravejados de minúsculas lâmpadas, representando renas, reis magos, pastores, o Menino Jesus, Santa Claus... E como era dia cedo, aqueles adornos portavam algo de esquisito, algo de ridículo, que somente à noite luzes acesas lhes poderiam conferir algum sentido estético ou lógico. Às portas pendiam as tradicionais meias de Papai Noel, ao lado de placas indicativas com os nomes dos habitantes daquelas propriedades: Herrera, Alvarez, Sanchez..., hispânicos, em sua maioria, mas os poucos que se viam às ruas eram pretos. Cercas. Havia cercas que meavam aqueles lotes, tinham não mais de um metro e cinquenta de altura, tecidas em telas uniformes, e havia cercas dando às calçadas, mas não eram divisórias fundadas para impedir a entrada de intrusos, senão - pensei - tinham a finalidade de demarcar virtuais territórios de posse. Grades. Havia grades às janelas de algumas casas, e eram obstáculos cujo sentido ainda não saberia decifrar, porque não estavam em todas as aberturas, mas apenas em algumas delas, as das fachadas, visíveis ao passante casual, como a anunciar impenetráveis fortalezas pessoais. O frio recrudesceu sob a densa sombra projetada por uma nuvem que cobriu as ruas, que varreu de vez o sol de Jamaica, sinalizando a chegada da neve que viria outra vez, agora sim, como o golpe de misericórdia sobre os pedaços de grama, sobre os jardins agonizantes, sobre as decorações de Natal que têm o seu tempo, sobre a vida que escoa em estertores que ninguém ouve. A cigarrilha apagou à primeira lufada de vento. Vi suas cinzas se dissipando no ar. Não caíram ao chão. Vesti com pressa a outra luva, meti as mãos no bolso, dobrei-me sob o casaco e fugi apressado de Jamaica.

5 de janeiro de 2008

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