sexta-feira, 18 de junho de 2010

LEGADOS DA ALMA

Com poucas horas de diferença, deixam-nos órfãos José Saramago e Bernardo de Souza. Eu me atrevo a estabelecer entre os dois um paralelo indissociável. Cada um à sua maneira foi alguém que não faltará sempre que desejarmos estabelecer visíveis marcos de coerência. Já era tarde para que Bernardo de Souza, o ser humano e o político, pudesse transpor os umbrais de certa eternidade. Aquela em que vamos – se fizermos jus – fazer repousar o significado da vida que teremos sido, isto é, a existência útil que cresce de nossos bons feitos, de nossas atitudes corretas e, sobretudo, de nossa dignidade. E que depois da morte passa a ser a lembrança digna de ser comemorada como exemplo. Para Bernardo de Souza - como comparou uma amiga comum no velório deste gigante ético -, cujo espírito atento apenas vivia aprisionado a um já corpo inerte, sua vida terá sido apenas uma passagem, pois seu exemplo em todas as áreas pelas quais transitou faz jus àquela certa eternidade. Os homens – diz-se - passam, as instituições ficam. E Bernardo foi uma instituição. Precisarei aqui ater-me a um assunto próprio e único que a Bernardo de Souza valia como profissão de fé: a preservação da cultura como valor inestimável. Foi ele quem primeiramente vislumbrou entre nós o significado que a ela se deveria dar e impor nas lides da política, desenvolvendo ações concretas que resultaram na criação da lei de incentivo à cultura, com maior justiça batizada “ Lei Bernardo de Souza ”. De lá para cá, passados tantos anos, milhares de projetos do setor puderam ser viabilizados, centenas de empregos foram criados e, mais do que tudo, instalou-se entre nós um modelo de pensamento corajoso e capaz de fazer emergir realidades a partir de sonhos que nossa incapacidade de neles acreditar os abandona com a freqüência contumaz de nossa falta de discernimento e vontade de agir. Saramago, por outra razão não muito distante, fundada em sua capacidade de expressar na ficção uma filosofia comparativa sobre os valores das sociedades de sempre, sobretudo as de nossos dias, no que diz respeito à coragem de enfrentar tabus, fez também ele dos sonhos instrumentos necessários às mudanças reclamadas em seu tempo. Enfrentou ditaduras, violências de toda a sorte, pensamentos retrógrados, pacificando, assim, o que todos sabem muito bem como deveria ser feito, mas não têm a coragem de fazer. Dois grandes vultos de nossa história. Um, pelos caminhos da política, dedicou-se às coisas maiores da cultura, tão bem expostas e racionalizadas em seus textos claros, e em seu exemplo cristalino como político. O outro logrou em seus livros execrar, com invejável habilidade e sutileza no manejo da palavra, a censura, a mediocridade, a incapacidade de transformar em riquezas os resíduos oníricos, que são a parte mais rica de qualquer ser humano. Conheci a ambos pessoalmente. Com Saramago, escritor de minha predileção, apenas troquei poucas e inesquecíveis palavras num diálogo de fim de tarde. Mas aquilo teve o peso de uma existência. Com Bernardo de Souza, também conhecido como o pai do Orçamento Participativo, que hoje é modelo de exportação para países do Primeiro Mundo, tive o privilégio de conviver por uma breve temporada quando ele foi prefeito de Pelotas e eu era diretor de um museu. Ambos foram seres únicos e iluminados, ambos foram homens de cultura. Este o paralelo que eu queria demonstrar, como o fundamento de um teorema dedicado à homenagem. Mas com a maior propriedade de que possa ser capaz, diria sem hesitação que a principal característica que os uniu foi a simplicidade.


Paulo César B. do Amaral

4 comentários:

  1. Paulo...

    Entendo pouquíssimo de política, e um pouco mais do que isso de pessoas. Mas sempre vi em Bernardo de Souza uma alma com desejo de mudança e capacidade de realização. Não há como lembrar de Pelotas sem lembrar deste homem.

    Parabéns pelo texto.
    Abraço.

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  2. Oi, Renata:
    De fato, Bernardo foi único como pessoa e como político ético, cujos exemolos são raros. Bj.

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  3. Paulo,
    belos textos e linda imagem que me forma em mente, Te vendo observar, em meio a frestas do queimar de um belo charuto, emoldurado pelo verde de tua janela, o encontrar destes dois homens onde quer que mereçam ou suas crenças os permitam estar.
    Te agradeço, "Ó" meu Cult dos Cult's Blogueiro, o puxão de orelhas que me escrevestes, Saiba que já havia iniciado meu processo de trabalho e estou em produção.
    Grande abraço!!

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  4. Ah, malandro, finalmente tralhando ... Não sabes que a função faz o órgão. Vamos fazer outra mostra. Tenho espaços. Abraços.

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